A História é dos Vencidos
Apontamentos da autoria de Marcos Farrajota para uma tentativa de escrever a História da Banda Desenhada em oposição à "História Oficial" que nos obriga a gramar com episódios inócuos e comerciais: super-heróis, idades do ouro e afins, tintins e spirous, etc...
sexta-feira, 27 de setembro de 2019
1001 Vencidos
Li recentemente este livro que recomenda 1001 BDs para lermos antes de morrer e a sensação com que fiquei é que já li mais das metade das sugestões, que metade dessa metade, ou até mais, é lixo; que faltam realmente obras-primas na banda desenhada; que uma boa parte dos colaboradores deste calhamaço são nacionalistas ou cromos, ou ambos. Todos todos, menos o Domingos Isabelinho e o Pedro Moura que assinam os textos mais brilhantes deste tijolo - os textos significam "sinopses" e "contextos" das obras sugeridas - e não, não estou a ser um porco nacionalista ao defender estes dois investigadores portugueses.
Agora que sofreram da "timidez tuga" isso é visível, tendo só conseguido incluir a obra de um português - O Diário de K (Polvo; 2001) de Filipe Abranches, adaptando Raul Brandão - enquanto que o menos escrupuloso sueco Fredik Strömberg fartou-se de meter das suas merdinhas. Haveria razões para colocar mais obras portuguesas? Sim, pelo menos duas, a saber:
- No Lazareto (Empreza Literária Luso-Brazileira, 1881 - reed.: Frenesi, 2003) de Raphael Bordalo Pinheiro, pai/ avô e mais qualquer coisa da BD portuguesa, o que seria um título tão importante como qualquer outro de outro país periférico às grandes indústrias da "bedófilia" se, efectivamente não tivesse mais valor intrínseco proporcionalmente ao seu desconhecimento público nacional e mundial. É das primeiras obras autobiográficas do mundo em BD, documento sobre os métodos de viagem e quarentena de quem vinha dos trópicos, denunciador da burocracia e corrupção latina e graficamente hilariante como só RBP sabia fazer.
- Ecos da Semana de Carlos Botelho que entre 1928 e 1950, no jornal Sempre Fixe, produziu uma pequena vida sobre a cidade de Lisboa mas também comentando a ascensão do fascismo pela Europa e pincelando alguns episódios de recorte pessoal (autobiografia outra vez). Faz parte daquelas obras que toda junta - infelizmente só existem duas (re)edições em livro, uma pela Gulbenkian (1989) e outra pela Bedeteca de Lisboa (1998) - rivaliza outras idênticas, aquelas que acompanham o tempo real de braço dado com a vida do autor da obra, como o Gasoline Alley de Frank King, começada em 1918 e que existe até hoje, Príncipe Valente (bocejo!) de Harold Foster começada em 1937 ou Mämmillä de Tarvo Koivisto de 1974. Todas elas contam as ficções de uma família ou de uma cidade a evoluir em tempo real, ou seja, os bebés crescem e tornam-se punks, o príncipe dá umas fodinhas na princesa para que a aristocracia continue na boa, a ser aquilo que sempre foi: inútil. O "Vaselina" e o Valente podem ser muito bonitinhos mas parece que o Koivisto e o Botelho sejam mais relevantes, uma opinião.
Depois deste aparte, rewind... o pior de tudo são aquelas tiras "clássicas" ou a inclusão dos primeiros números em que aparecem este ou aquele super-herói. Não defendo que tenha-se de fazer grandes separações entre a BD comercial e popular da artística mas há uma diferença entre o Little Nemo de Winsor Mckay e a cagada do primeiro número da Action Comics onde nasce o Super-Homem. É que o Nemo ainda se consegue ler depois de 100 anos, o Super-Homem de 1938 é trampa e quem consegue ler aquilo e achar piada, só pode ser um atrasado mental - sem querer ofender os deficientes mentais. Que incluam super-heróis quando eles tenham interesse, por exemplo nas mãos de Frank Miller (facho de merda!), Alan Moore (anarquia já!) ou Grant Morrison (drogado do caralho!) mas fazer este compromisso de apresentar 1001 BDs entaladas entre socialmente relevante (super-heróis, por exemplo) com Arte, é dar um tiro nos pés. Sobretudo porque impinge a ideia de cânones dos cromos como uma espinha dorsal que depois congrega "o resto". Esse "resto" é o que realmente interessa. Por isso, é que não se encontra quase títulos Amok / Fréon / Fremok ou muito poucos de L'Association no terreno europeu, o que é deveras estranho quando foram eles que mais cartas deram à BD nos últimos 30 anos - o livro acaba com a data de 2011 - ficando só listados os que receberam prémios em Angoulême, como se fosse deste festival que viesse o carimbo exclusivo de qualidade.
Fazer uma coisa destas dá uma trabalheira e não vale a pena pensar a quantidade de pequenas incongruências ou erros que sucedem nas suas páginas. Num volume aumentado, melhorado e tal deverá dar -se conta disso mas há um gosto de derrota ao lê-lo. O Gravett de certeza que podia ter reparado em faltas graves - que ele não consiga engolir obras de línguas que não percebe como a portuguesa, tudo bem - mas nitidamente só do monstro franco-belga há razões para incluir outras obras e excluir outras em língua inglesa ou francesa ou japonesa.
Então, fui às compras, à procura de algumas das obras referidas e agradeço ter descoberto o artista dinamarquês Palle Nielsen (1920-2000) e o seu Orfeus og Eurydike (Hans Reitzels; 1955) mas já a parvoíce enche-chouriços britânico Magic Mirror (Elbonvale; 2010) de Ed Pisent dispenso completamente, foi deitar dinheiro para o lixo; tal como Kari (HarpeCollins India, 2008) da indiana Amruta Patil que pelo facto de ser um trabalho que a personagem é lésbica num país conservador faz dela uma autora corajosa mas não uma artista; ou Rumble Strip (Myriad; 2008) de Woodrow Phoenix que possui um texto poderoso sobre a (ir)responsabilidade de quem está ao volante mas os visuais minimalistas e sem uso de figuras humanas, não surtem nenhum efeito especial a não ser pensar que estamos de frente da preguiça, o que é pena, conceptualmente prometia; e, Forget Sorrow (W.W. Norton; 2010) de Belle Yang é outra desilusão, desenho horrível e narração desinteressante - o marketing insiste em comparar a Maus ou Marjane Satrapi mas não se compara, é um sucedâneo como muitos que andam por aí. Disappearance Diary ((Fanfare; 2008) de Hideo Azuma tem tudo para ser interessante, é o diário de um autor de BD que se passa e vive uma vida de mendigo. Infelizmente rapidamente torna-se num "gourmet" para sem-abrigos com piadolas sobre o aleatório deste tipo de vida. Sem nunca se explicar da razão do seu desequilíbrio mental ou a forma como isso afectou os seus pares, a obra torna-se tonta a dada altura.
Uma surpresa foi Special Exits (Fantagraphics; 2010) de Joyce Farmer, uma auto-ficção sobre os últimos dias dos pais da autora, livro com um peso deprimente mas com alguns apontamentos reconfortantes sobre a vida e a morte.
Recentemente li o Tom Hart e o seu Hutch Owen, divertidissimo mas nada feito nos "1001", não foi dos eleitos - por ser anarquista? Li The Pillbox (Jonathan Cape; 2015) de David Hughes e arrepiei-me q.b., não consegui o que o "1001" recomendava - Walking the dog (Jonathan Cape; 2009) - mas fiquei curioso... isto para dizer que há ainda obras a descobrir para além das "1001", menos mal.
Em compensação Life? Or Theater? (Taschen; 2017) de Charlotte Salomon (1917-43) é uma obra tão inesperada quanto impressionante. Composta por 700 desenhos / pinturas feitas a caminho para exterminação pela máquina Nazi, conta a história de Salomon e membros da sua família, o advento do Nazismo e sobretudo a vontade de viver de Charlotte face a um historial de suicídios de várias mulheres da sua família. E mais que um relato de uma tragédia há lugar para ensaios e que não deixaria passar esta frase: If the comtemporary sculptor cannot work without the phonograph sounding in his ears 'for inspiration of his soul' - this to me is proof that most artists of our time have lost the primordial sense of experience (...) all their urge to create turns them into apes and parrots (p.448) Um espírito assertivo que viveu nos piores dos tempos. Aliás estas frases poderão ser aplicadas a 75% do livro das "1001 BDs"...
Bom, estava preocupado enquanto profissional na área de que houvesse assim tantas obras importantes que não tivesse lido. Afinal está tudo bem, muito obrigado!
sábado, 10 de novembro de 2018
AAA
Automatismo (krazy kat, moebius, crumb)
Autobiografia (Buzelli, Pekar,… Neaud)
Autoprodução (underground 60 -> POD)
terça-feira, 30 de junho de 2015
Punk Comix: Os “flirts” entre a BD e o Punk em Portugal
1. Questões e
constatações
Este paper é um
resumo de uma investigação da forma que o Punk é tratado na Banda Desenhada
portuguesa e o que conta a Banda Desenhada portuguesa sobre o Punk,
numa base de testemunho pessoal, de escrita empírica e com uma investigação
sobre os acervos pessoais e públicos (sobretudo no da Bedeteca de Lisboa). A investigação
será publicada na íntegra num livro sob o título “Punk Comix : Banda Desenhada
e Punk em Portugal”.
Serve o artigo como um documento de referência para quem
quiser pegar na BD para trabalhar em assuntos relacionados com o Punk, culturas
urbanas, música, cultura Do-It-Yourself (DIY), artes gráficas e editoriais. A
cultura da BD sofre de reconhecimento social e institucional, sempre
relacionada como um produto de massas e de preferência para as camadas
infanto-juvenis. Vista como uma “arte freak” pelo uso simultâneo de texto e de
imagem, costuma irritar quem quer coisas bem comportadas e estanques que se
possam colocar numa gaveta literária ou numa visual. É justamente este estatuto
híbrido que a torna bastante interessante para quem precisa de imagens ou
documentos textuais em alguma investigação sobre uma cultura, como a da KISMIF
sobre o punk.
Apesar dos bravos e originais inícios, a BD portuguesa tem reduzida
produção por falta de investimento das editoras, seja em BD comercial ou “de autor”.
Pior é constatar que são poucas as obras que nos contam sobre Portugal e as
suas gentes, mesmo quando mascarada em autoficções ou ficções. Pode-se culpar o
isolamento do Fascismo e a geografia periférica para essa pobreza de conteúdos;
mas mesmo depois do 25 de Abril até hoje ainda são poucas as obras ligadas à “reportagem”,
“jornalismo”, “crónica”, “diário de viagem” ou “autobiografia”.
Para além disso há pouca regularidade de produção de cada
autor para se conseguir manter um contínuo de análise da evolução de um tema específico.
Há obras que saltam no tempo – como o caso de Arlindo fagundes que fez dois
álbuns de BD separados por 17 anos! - e não há diálogo entre obras e autores.
Para ter um quadro mais completo sobre a “BD punk” é preciso ir buscar mais
fontes, seja a BDs de outros temas, seja à ilustração ou ainda ao meio
editorial independente.
Dada a estas limitações gerais até é bastante fácil apanhar
“toda” a produção feita em volta do Punk na BD portuguesa e felizmente, através
do acervo da Bedeteca de Lisboa consegue-se aceder a quase todas as edições, mesmo
as underground, para se poder trabalhar neste tema – ou qualquer outro.
Resta chamar a atenção que durante esta investigação levantaram-se
questões que alguém deveria estudar e responder, sobre a importância da BD na
construção da cultura Punk. A começar internacionalmente no berço do Punk com a
revista nova-iorquina Punk Magazine (1976/79) de John Holmstrom que parece mais uma
revista de BD “underground” do que uma revista de música. Activa entre 1975 e
1979, a revista terá um impacto na comunidade de Nova Iorque, solidificando o
termo “punk” (especialmente quando um número foi enviado como material de
imprensa na promoção do disco de esteia dos Ramones) e mais tarde influenciando
várias outras publicações pelo planeta fora, sendo um catalisador para inúmeros
fanzines punk que surgiram como o Snifin’Glue
de Londres.
Em Portugal, temos o caso da loja Mundo da Banda Desenhada (mais tarde Op) que entre 1977 e 1987 era um importante ponto de encontro frequentado
por punks e boémios lisboetas; e há também o caso levantado por Paula Guerra,
Pedro Quintela e Júlio Dolbeth no catálogo God
Save The Portuguese Fanzines (2014) sobre a importância da BD que se
encontrava no primeiro fanzine punk do Porto, Cadáver Esquisito (1986).
2. Existem obras que tratam
sobre o punk em Portugal?
Surpreendentemente, apesar da “miséria” da produção
portuguesa, encontram-se obras curiosas e válidas para estudar o Punk em
Portugal. Elas existem e de várias formas, havendo até livros monográficos
dedicados exclusivamente ao tema.
Apesar de haver umas figuras ou referências ao punk desde 1979,
tratavam-nas sem dar importância e/ou fora de contexto, como os punks que
apareciam na Iª Guerra Mundial da série O Espião Acácio de Fernando Relvas na revista Tintin.
O que podermos chamar de personagem com protagonismo será
outra vez pelas mãos de Relvas em 1983 e desta vez com personagens femininas -
algo de espantar num meio machista como o da BD e do punk! Sabina e Sangue
Violeta são as personagens/BDs que aparecem no semanário Se7e.
Depois disso os punks vão desaparecendo face a outras subculturas que nascem ou
crescem nas últimas décadas do século XX, servindo apenas de “mobiliário
urbano”. Voltam no início deste milénio com a entrada da Autobiografia na BD
portuguesa em que são tratados menos como estereótipos mas como “humanos” –
criticados, interrogados e a testemunharem factos reais.
Há uma proeminência de histórias curtas com/sobre punks porque
apareciam em publicações “precárias” (como fanzines) ou efémeras como “gags” de
páginas de periódicos – as BDs de Nuno
Saraiva e o seu Zé Inocêncio. Na
maior parte das BDs o papel do punk é quase sempre secundário. São em BDs longas
que ganham protagonismo como nas BDs de Relvas, 88 de Nunsky e Punk Redux de João Mascarenhas mas são nas BDs curtas
que se encontra o conteúdo mais documental - autorias de Teresa Câmara Pestana, Marcos Farrajota, José Smith Vargas,…
E se as primeiras BDs com Punks aparecem logo em jornais –
Relvas no Se7e e Diniz Conefrey no Blitz –
a sua presença mediática vai desaparecendo à medida que perde o impacto na cultura
urbana dos anos 90. Essas mesmas BDs voltarão oficialmente com a reedição em
formato livro a partir de 1996, apanhando o “boom” da BD portuguesa dessa época
até aos dias de crise de hoje.
A maioria das BDs sobre Punk aparecem em edições de pequena
tiragem como fanzines e livros auto-editados de Rigo, T.C. Pestana, Associação Chili Com Carne, fanzines de BD (Ritmo,
Epitáfio,
Nuxcuro, Hips!, Mesinha de Cabeceira, KBD e Azul BD3), fanzines punk
(Cadáver
Esquisito, Morte à Censura e LBN Punx Zine) e ainda fanzines punk
de BD: Over-12, Os Positivos e Ezequiel.
3. Que documentação
apresentam essas obras sobre a realidade do punk?
Conforme as preocupações do projecto KISMIF, tentou-se localizar
tópicos que possam ajudar investigadores noutros estudos: o retrato da boémia
ou ambientes ligados à cultura urbana em Portugal, identificação de punks
ligados à música, bandas e concertos, códigos comportamentais e estéticos,
convívio com outras tribos urbanas em especial com a cultura skinhead neo-nazi,
comportamentos sexuais, utilização de drogas, movimento okupa e o “aging”.
Em relação à boémia, a BD portuguesa tem várias obras
que apresentam casos realistas dos sítios que eram frequentado e a respectiva
“fauna”, sobretudo no que diz respeito à capital nos anos 80 e 90 em obras de
Relvas, Ana Cortesão
(importantíssima a sua BD sem título de 1993 reeditada mais tarde no álbum A minha vida é um esgoto para perceber o
cosmopolitismo e a “gentrificação” de Lisboa no final dos 80s), o álbum
colectivo Noites de Vidro (CML; 1991) sobre os sítios nocturnos de Lisboa
e as três BDs do (anti-herói) Ruivo de Diniz Conefrey no Blitz.
Quanto a representação de músicos punks conclui-se
facilmente que João Ribas
(1965-2014) é o super-punk! É o músico mais retratado por gerações diferentes: Relvas
na Sangue Violeta (no Se7e) em 1984 com a banda Kú de Judas; Diniz
Conefrey no jornal Blitz (1992) e por
Afonso Cortez-Pinto e Marcos Farrajota no disco Raridades
(2009) nos tempos de Censurados. Haverá mais bandas portuguesas (e
estrangeiras) representadas não necessariamente punk ou underground até hoje:
Xutos & Pontapés, UHF e Pop Dell’Arte (na colecção BD Pop Rock Português), Crise Total, X-Acto, Albert Fish, Ratos de
Porão entre outros sobretudo em zines.
A BD é excelente para representar códigos comportamentais
e estéticos de tribos urbanas e encontram-se em várias obras já citadas
(Relvas, Rigo, Saraiva, etc…) e mais tarde no primeiro volume da série Loverboy,
de Marte e João Fazenda, os comportamentos globalizados da “cultura
alternativa” marcada pela MTV.
Surpreendente é a presença de skinheads nas BDs, na
maior parte do tempo como figurantes mas também como antagonistas às
personagens principais, sobretudo nos anos 90. A única situação realista com
estes indivíduos é dada pela primeira BD de Ruivo
(de Conefrey) em que regista um jogo parvo e estranho de darem estaladas
uns nos outros. Outras tribos urbanas (rockabillys, dreads, “vanguardas”,
freaks e metaleiros) aparecem noutras BDs em coexistência mais ou menos pacífica.
Violência policial quase nunca é retratada tirando uma referência numa BD de T.C
Pestana num Gambuzine.
Procurou-se por sexo mas não se descobriu nada de
especial tirando o facto que quase toda a sexualidade na BD portuguesa é sobre
um ponto de vista heterossexual mesmo na ”BD punk”. Dentro da ficção há várias
fantasias eróticas envolta do imaginário punk, como demonstra Nunsky em duas
BDs no zine Mesinha de Cabeceira – Inadaptados (1994) e 88 (1997).
Já a droga é quase sinónimo de Punk, e por isso “ela”
(a heroína) está-lhe sempre associada, em modo de ficção, humor ou fantasia. O
caso mais real será a excelente BD de Pestana - O meu vizinho no Gambuzine de 2008 - que conta uma
história sobre a sua experiência pessoal numa “okupa” em Hannover, em 1989, com
toxicodependentes.
É suposto que as “okupas” portuguesas feitas por
punks aconteceram só nos anos 90 e talvez por isso que demoram a aparecer nas
BDs. Só neste milénio é que existem esses registos, mesmo que se reportem a
1989 como a BD de Pestana que apesar de se passar na Alemanha com as devidas
distâncias socioeconómicas reflecte bem o espírito da altura. Há mais dois
registos sobre “okupas” portuguesas, uma no livro Boring Europa (Chili Com
Carne; 2011) sobre a destruição da S.P.C.C., provavelmente a última “okupa” em
Lisboa, e José Smith Vargas sobre a
expulsão e emparedamento do edifício onde decorria o projecto social auto-suficiente
e autogerido Es.Col.A no Alto da
Fontinha, Porto – editada na revista Buraco
(2012).
Sobre o “aging” a situação complica-se porque não há
uma obra como Locas do
norte-americano Jaime Hernandez em Portugal (sobre este autor, ver anexo 1).
Por isso é preciso saltitar por registos que ofereçam situações idênticas,
sendo que a escolha será sobre autores que usem a “autobiografia” como
matéria-prima na sua obra, como Marcos Farrajota, Marco Mendes e Teresa Câmara Pestana. É preciso fazer pontes entre eles
para ter uma vista panorâmica do que possa ser a vida de criativos em Portugal
ligados à cultura DIY. Curiosamente até há uma crítica a um autor quando Pestana
ataca Farrajota por ser um “punk de escritório (…) quase honesto”, num número
do Gambuzine. Em contraponto há as
BDs que Farrajota fez em 1995, 2001 e 2011 em vários zines sobre o “ponto da
situação” da sua vida, sobretudo a profissional. E Mendes tem feito
autobiografia desde 2007 apanhando temas como a boémia do Porto, o trabalho
precário e miséria social da crise portuguesa que assaltou o século XXI. Estas
duas últimas situações são preocupações de uma classe “mérdia” (usando uma
expressão de Pestana) mas sendo são dos poucos testemunhos sobre percursos de
vida que se pode fazer analogias aos modos de vida das subculturas em Portugal.
Por fim, têm sido colocadas questões “existenciais” à cultura punk e
underground por Farrajota no zine brasileiro Prego (2011), no livrinho
do DVD do 15º aniversário do Festival de
Metal de Barroselas (2011) e na revista eslovena Stripburger #62 (2013).
4. De que forma o
punk é tratado nas BDs?
Maltratado, claro! Sobretudo no campo da ficção e fantasia,
alinhado à cultura oficial, o Punk aparece representado como um pequeno
criminoso de rua, marginal ou toxicodependente, geralmente identificado com um
moicano. Mesmo as personagens principais de obras sobre punks elas parecem
pouco “humanas” – o que Violeta de
Relvas nos diz? Diz tanto como o emblemático slogan “No Future”. Pode-se
afirmar que não há personagens punks interessantes! Também não se detectou
“anti-heróis” – como os estrangeiros Peter Pank, Tank girl ou Bob Cuspe… E já
agora, sejamos realistas estes três exemplos vieram a Portugal importados de
revistas brasileiras! Quase não há representações de punks de BDs estrangeiras
traduzidas em Portugal – encontrei uma BD de Serge Clerc no Jornal da B.D. (1985) e pouco mais… Só
isto revela a (falta de) dinâmica do mercado nacional.
Só no final dos 90 e neste milénio é que os punks são tratados
como “pessoas” (Pestana, Boring Europa,
Farrajota), devido a duas razões. Primeiro, porque o punk em Portugal começou
como algo fútil, uma tribo urbana a fugir à modorra pós-PREC, e só nos anos 90
é que se foi metamorfoseando num circuito realmente underground com estruturas
e modos de vida militantes; e em segundo, só nos anos 90 é que a BD portuguesa
acedeu aos novos paradigmas de criação da “BD Alternativa” norte-americana e
europeia, explorando o género “documental” até então inexistente ou esquecido –
estranhamente quando os pioneiros Rafael Bordalo Pinheiro e Carlos Botelho
fartaram-se de fazer Crónica!
5. Existem autores
que foram / são punks?
A discussão neste ponto é complicada porque tinha-se de
identificar autores “punks” no meio de uma enorme lista de autores de BD em
Portugal ligados à cultura DIY. Esta cultura DIY na BD nacional justifica-se
pela ausência de editoras interessadas em publicar autores portugueses, com
trabalhos comerciais ou não. Fazer um levantamento dos artistas que publicaram
os seus fanzines ou criaram estruturas independentes de edição mostra um
verdadeiro “movimento” que raramente se pode ver noutras áreas criativas neste
“país onde não se passa nada”. Mais do que haver ou ter havido autores punks, o
que houve foi autores que fazem “flirts” ao Punk e a cultura DIY, uns com mais
militância que outros, raramente colocando um moicano na cabeça.
Em teoria, o punk não trouxe movimentos para a BD, o
estudioso Domingos Isabelinho no texto do catálogo Tinta nos Nervos até duvida que se possa falar em “ismos” na BD. E
se pudermos afirmar que a cena da BD é tendencialmente conservadora devido ao
seu passado infanto-juvenil e que a cena punk é essencialmente politizada, quem
vive num dos mundos será impossível viver no outro. São raros os casos de
intersecção mesmo a nível internacional. Foram escolhidos quatro casos para
criar modelos de identificação de autores punk (ver anexo 1), a saber:
1) BD de
género dentro de um nicho (Ganes)
2) BD com
aspecto tradicional que retrata uma cena (Hernandez)
3) BD
autobiográfica na cena punk (Konture)
4) BD com um
estilo gráfico surgido da acção punk (Panter)
Tentando usar modelos internacionais para identificar “autores
punk” até se encontra situações idênticas com as devidas longas distâncias. O
caso do britânico Simon Gane, o “king of punk comics”, ou seja, uma “BD de
género dentro de um nicho de mercado” poderá ser encontrado em Portugal através
dos autores Marcelão e Valter de Matos que publicaram ou ainda
publicam, respectivamente, os fanzines Over-12 e Os Positivos. Circunscritos
ao reduzido circuito do Hardcore e Straight Edge português torna-os quase invisíveis
ao “olho público” comparando com a “fama” de Gane no underground internacional.
No entanto neste milénio, o underground português tem-se profissionalizado e
embora as suas BDs não reflictam directamente uma vivência “punk”, encontramos
os nomes de André Coelho e José
Smith Vargas reconhecidos mais pelo trabalho gráfico para cartazes, capas de
discos, skates, t-shirts do mundo da música underground ao nível internacional.
No caso de Jaime Hernandez, ou uma “BD com aspecto
tradicional que retrata uma cena” já foi referido os casos de Relvas, Conefrey,
Loverboy e Mascarenhas que tratam
sobretudo de situações lisboetas de boémia com alguns punks mas de longe
apanham o fenómeno de “aging” ou oferecem vozes para uma minoria cultural.
No caso do francês Mattt Konture, ou “BD autobiográfica na
cena punk”, há claramente T.C. Pestana que se enquadra num estilo de vida
underground e em contacto profundo com esta cultura.
E para equiparar ao texano Gary Panter (ou “BD com estilo
gráfico surgido da acção punk”) parece impossível fazer essa correlação e
salta-se para a última questão.
6. Havendo autores
punks, que estilos gráficos usam? Haverá um estilo gráfico punk português?
Os estilos gráficos das BDs portuguesas são deveras
personalizados devido à falta de massa crítica de produção, ao contrário dos
facilmente identificáveis estilos de países com grandes mercados e indústrias
culturais como o Japão (o “estilo Manga”), os EUA (o género “Super-Heróis”) e
os “grandes narizes” e a “linha clara” da BD franco-belga. Em Portugal, cada
autor, underground ou comercial, desenvolve o seu estilo gráfico único e que
poucos imitam porque cada estilo reflecte um percurso irrepetível de carreira
profissional, que não pode ser continuado por outros.
Aumentando o leque de observação para os autores de BD que
fizeram grafismos para bandas / discos / cartazes punk também não se conseguem
deslumbrar uma linha gráfica única porque também na música portuguesa nos anos
80 e 90 se faziam poucos discos de bandas nacionais – como referido, só o
aumento de produção de discos neste milénio é que criou um nicho para autores
como Coelho ou Vargas.
No grafismo Punk, consegue-se identificar algumas
características gerais, a maior parte passiveis com origens noutras
denominações artísticas como no Dada, Art Brut, Geração Beat e Situacionismo. O
Punk e a música Industrial irão exponenciar muitas dessas características
transformando-as em práticas comuns na produção criativa popular. As quatro
características possíveis de identificar grafismo “punk” serão:
1) O
“brutismo”, ou autores sem formação que criam sem pudor ou interesse económico,
tal como o termo “Art Brut” cunhado por Jean Dubuffet;
2) Iconoclastia,
ou a alteração de imagens, o uso da colagem, os “detournement” Situacionistas, vindo
dos Dadas e “ready-mades”;
3) O humor
como confronto político e social, inteligente e contundente (como Dead Kennedys
ou os Crass nas capas de discos) ou apenas grosseiro e canalha (como mil bandas
Drunk / Street Punk fazem com desenhos feitos na tasca mais perto de si);
4) O DIY,
que significa na realidade Independência ou Liberdade, em que o autor prefere
fazer ele próprio tudo, dominar os meios de produção invés de entregar um
trabalho a alguém que o poderá arruinar ou alterar a forma ou o conteúdo.
Tentou-se verificar se existem alguns traços comuns entre a
produção nacional com as características básicas da estética Punk, chega-se à
conclusão que a “iconoclastia” e o “humor” não são características que se
possam assinalar por razões equidistantes, no primeiro caso porque é raro encontrar
colagem na BD ou uso exclusivo dessa técnica, e no segundo, o impacto da
revista brasileira Chiclete Com Banana
(onde aparecia o Bob Cuspe) do Angeli
ultrapassa o “guetho” punk e encontra-se em várias produções humorísticas
generalistas portuguesas de BD. Também se deve pensar que o humor escatológico
e tonto é quase universal nas produções punk para ser pensado como um exclusivo
nacional.
Já a “art brut” (ou sujidade ou espontaneidade do desenho) e
o “DIY” (que não é um valor estético em si) são as características que unem uma
série de autores de BD, que tenham ou não tratado de assuntos punk, desde os
anos 70. Em parte deve-se ao advento das tecnologias baratas de reprodução (as
fotocopiadoras) que permitirem cada um publicar sem pedir licença a ninguém e
explorar as limitações dessas tecnologias no tratamento das suas imagens, de
forma que esses processos ajudaram os seus estilos a evoluírem.
Será também o desenvolvimento tecnológico dos meios digitais
(a começar pelo processamento de texto até ao Photoshop) que irão limpar e
nivelar os grafismos underground até um profissionalismo que se confunde com o
da cultura oficial, a partir dos meados dos anos 90.
Por fim, pegando na questão da produção de fanzines e
auto-edição, surge a dúvida da “galinha ou o ovo” na BD portuguesa. Olhando
para grande produção de fanzines portugueses que data ainda antes do 25 de
Abril de 1974 fica-se a pensar se a influência do Punk na BD portuguesa não
passa de um fenómeno paralelo, um bastardo de algo maior que estava acontecer.
Uma dúvida que merece uma investigação específica.
A produção portuguesa de BD sustenta-se na premissa da
produção amadora, militante e DIY para existir e evoluir ao longo dos tempos,
especialmente depois do 25 de Abril quando o profissionalismo tornou-se cada
vez mais raro – essa raridade já vinha dos anos 60 em que deixou de haver um
proteccionismo de Estado para este mercado. São poucas as séries publicadas em
jornais ou revistas e raramente existem encomendas para livros. Quase toda a
produção pós-25 de Abril é feita de auto-edições ou editoras que são empresas
de pequena dimensão. Logo o que se podia dizer com muita excitação é que a BD
portuguesa é Punk!
Bibliografia e anexo 1 de Punk Comix
Anexo 1: Very
Important Punks (autores mais conhecidos de BD punk)
O britânico Simon
Gane (1972?) seria daqueles nomes que na BD dirá pouco, porque a sua obra
não é particularmente inovadora mas é um autor reconhecido na cena punk, ou
pelo menos era nos anos 90. Diz-se que não há fanzine punk que já não tenha
publicado, com ou sem consentimento do autor, imagens da sua personagem “Arnie,
The Anarchist”, série essa que tem a lógica da tira humorística num
micro-universo em volta das questões da Anarquia. No seu auge na cena punk
ainda ilustrou centenas de capas de discos, cartazes e outra efémera. Hoje,
parece que Gane é um autor como muitos outros no grande mercado
norte-americano, trabalhando para editoras conhecidas como a Top Shelf e a DC
Comics. Se Gane recebeu o título “king of punk comics” foi por reconhecimento
na cena punk e não pela BD, claro.
A BD aliás tem esta tendência a ser um clube de rapazes
bem-comportados devido à sua pesada história da BD comercial que parece devorar
tudo e todos fora desse parâmetro. Talvez por isso seja raro haver autores como
o francês Mattt Konture (1965) que
tem uma legião underground de leitores. Konture vem da cultura punk – onde
aliás, continua – como artista gráfico e como músico mas ao contrário de Gane,
a BD que realiza é sobre essa realidade na primeira pessoa, embora muitas vezes
o seu trabalho passe pelo automatismo, experimentalismo e psicadelismo como se
verifica na sua única BD publicada em Portugal na revista Quadrado #2 (3ª série, Bedeteca de Lisboa; Set’00). Ele e outros
cinco autores foram responsáveis pela criação da editora L’Association, em
1990, que modificou para sempre a BD europeia, em grande parte pela abordagem
da autobiografia à BD. O seu estilo gráfico é misto do “brutismo” (Art Brut e
estética lo-fi do punk) e uma tradição abonecada que ainda vem do underground
dos anos 60, sendo Robert Crumb uma influência assumida de Konture.
Nos EUA, é impossível não referir aos três irmãos Hernandez que criaram a revista Love & Rockets (título que os
ex-Bauhaus roubaram sem vergonha) em 1981 e que é um marco histórico para o
subsequente movimento da “BD alternativa” que cresceu daí até ao fim do século
passado. Um dos irmãos, Jaime
(1959), realizou nesta publicação a série “Locas” que tratava da vivência no
meio punk/ hardcore da Califórnia. Os Hernandez apesar de não realizarem
registos autobiográficos como Konture, as histórias que contam são fruto dos
seus encontros quotidianos com a comunidade latina em que se inserem, o que imediatamente
as torna importantes num contexto sociológico de testemunho de uma minoria
cultural norte-americana. Não só uma minoria latina que representam mas,
curiosamente, também de um testemunho feminino na cultura punk/ hardcore, uma
vez que a maioria das personagens dos Hernandez são mulheres. Em trinta anos
mantiveram a revista e as suas séries, com algumas interrupções pelo meio, o
que permite fazer uma análise de “aging” sobre estas personagens fictícias mas
que transpiram realidade pelos poros. Resta dizer que o estilo gráfico deles é
tradicional, realista, Pop estilizado a lembrar o grafismo dos anos 50 mas a
preto e branco – obrigatoriamente pela questão de custos de impressão da
revista. À superfície o que interessa mais será o conteúdo do que a estética
por mais que uma das personagens costume usar “patches” de Black Flag.
A antítese dos Hernandez (e dos outros) será o texano Gary Panter (1950) cujo desenho
“deficiente” e “ratado” é largamente influenciado pela liberdade estética que o
punk trouxe. Ele próprio foi ilustrador e autor de BD para um fanzine punk, Slash, entre 1977 e 1980, desenhou
material gráfico para várias bandas, sobressaindo-se como um importante artista
gráfico. O problema será saber se as BDs de Panter contam algo realista sobre o
punk e à partida a resposta será “não”. No máximo poderá contar que houve (ou
há) punks com muito ácidos e vindos da província como o seu Jimbo mas como o mundo onde esta
personagem se move é demasiado instável para o posicionarmos onde quer que for
- mesmo quando a cara de Jimbo tenha sido inspirada pela do vocalista dos The
Screamers. Panter é um exemplo como o primitivismo estético do punk foi
rapidamente assimilado pelos artistas dos anos 80, fazendo dele uma figura de
vanguarda nessa década quando publicava na seminal Raw, revista dirigida por Art Spiegelman.
Bibliografia
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_____; Talento Local; Cascais : Associação Chili com Carne;
2010
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Pestana, Teresa Câmara; Continuamos aqui?; [s.l.] : Edição
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contemporânea; Oeiras : Celta, 1999
Jornais e revistas
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Distribuição
- Quadrado, 3ª série (2000). Lisboa : Bedeteca de Lisboa
- Stripburger (2013). Ljubjana : Forum Ljubjana
- Tintin (1979-1982). Amadora : Livraria Internacional, lda
Sites
- chilicomcarne.blogspot.com (da Associação Chili Com Carne)
- mesinha-de-cabeceira.blogspot.com (de Marcos Farrajota)
- rocknoliceu.blogspot.com (de André Nascimento)
- vimeo.com/75151697 (de Miguel Nozolino)
Zines:
- Buraco (2012). Porto
- Cru (2012-2014). Póvoa de Varzim : Esgar Acelerado
- Gambuzine (1999-2008). Porto : Edição Infecta
- Mesinha de Cabeceira (1992-2015). Cascais : FC Kómix
- Prego (2011). Vila Velha : Alex Vieira
Entrevistas
- Diniz Conefrey (Abril 2014) por e-mail
domingo, 12 de outubro de 2014
comix remix extra
Enquanto ia escrevendo o artigo Comix Remix iam aparecendo sempre novas situações ou velhas lembranças sobterradas, (re)descobertas que impressionavam e que poderiam ter entrado no artigo com o perigo de o transformar numa listagem, afinal são mais curiosidades que obras seminais mas gostaria de as partilhar aqui seja como for...
Por fim, na Terça FEIA apanhei um livrinho A6 editado pelo Samba, intitulado Sem/ registo (2012) de um tal Pedro Ivo Verçosa... É uma BD inteiramente feita de colagens e sem palavras. Um livro simples com um relato simples de uma bola humana que faz metamorfoses várias até voltar tudo ao mesmo. Plasticamente é bonito e vê-se que o autor domina a narrativa e composições de páginas da BD.
Outro caso deste espírito dos tempos do Comix Remix, foi o lançamento do livro Le Carnet Rouge (Soleil; 2007) do dinamarquês Teddy Kristiansen para o mercado norte-americano. O livro sofreu o milagre da duplicação e ficou um "split-álbum": The Red Diary / The Re[a]d Diary (Image; 2012). O que aconteceu é que Steven T. Seagle (argumentista ianque que colabora com Kristiansen nos super-heróis) não sabendo um pingo de francês ou dinamarquês "traduziu" o livro criando um texto novo para as mesmas imagens - aliás, ele usou a sua técnica de "transliteration", que é "traduzir" palavras de uma língua para o inglês mas pelo o que ela "soa" ou se "parece". O resultado é um texto - uma história - completamente diferente do Le Carnet Rouge. Ambos os contos não são nada de especial, algo de "light" como é típico nos "álbuns franco-belgas", em que a mediocridade de temas são disfarçados pela "bela" arte, que todos reconhecerão Kristiansen como tal, com o seu estilo "impressionista" - talvez por iso é que tem no currículo o facto de ter sido o primeiro europeu a desenhar o Super-Homem. Mas depois de ler a sensação é que não muito a não ser "belos" desenhos. Curiosamente, o texto de Seagle parece ser mais concreto e interessante que o "original"... Foi o Joseph Beuys que disse que a "cópia é melhor que o original"?
Estive em Maio no Porto, na feira da ladra mais podre do país. Chama-se Vandoma e cada vez é maior e com mais tralha. Foi lá que descobri Grande Música Negra (RÉS; 1975), quinto livro de Jorge Lima Barreto. Um livrinho de capa preta que fala de Jazz à pedante que merece aquele tema dos Naked City: Jazz snob eat shit. Mas seria injusto também não escrever que a pespectiva é sempre chamar atenção ao sofrimento dos negros nos EUA. O que me motivou a comprar o livro não foi para ler sobre Jazz mas porque custava um euro e nas primeiras páginas do livro Barreto faz um "detournement" sobre uma BD do Tarzan, ou seja, mudou o texto original por outro completamente anti-imperialista, anti-colonialista e bastante divertido, como se espera desta técnica situacionista. Foi curioso encontrar isto a poucos dias de lançar o novo livro do Rui Eduardo Paes, o "a" maiúsculo com um círculo à volta. Barreto ousou usar uma BD para servir de chamariz visual, ou melhor ainda, como um manifesto contra o racismo e a exploração capitalista sem ser escrito apenas como texto simples. Em Portugal é tão raro usar a ilustração nos livros - visto como algo menor - que realmente este livro surpreende pela ousadia dupla, de pegar em desenho / BD e pelo "detournement".
Talvez nos anos 70 os intelectuais fossem menos parvos do que são hoje... No mesmo ano é editado em forma de livro comercial Conto de Natal para crianças (Forja) do poeta surrealista Mário Henrique Leiria, todo ele é um livro ilustrado e usando ideias de "detournement" do Situacionismo (e não do Surrealismo) porque é uma obra política. Realizado em Dezembro de 1972 como oferta a um amigo, este livro junta um texto inocente escrito com uma caligrafia de criança com as imagens mais horríveis da altura: mutilados de guerra, massacres e fome, fotografias de políticos fascistas "da altura" (Salazar, Nixon, Pinochet),... Uma obra de choque visual usando o paradoxo do texto bonito com imagens feias. Surgiu isto trocando outro livro de Leiria, Casos de Direito Galático, com um sócio da Chili Com Carne encontrado sem querer no mundo dos leilões virtuais. O mundo também é pequeno na Internet!
Esta página foi publicada no jornal Coice de Mula #4 (2002) e é de autoria de Alex Gaspar (1965-2010). O jornal existiu em oito números entre 1999 e 2007 "para a despoluição da arte contemporânea" sendo que o autor sempre colaborou com algumas BDs, algumas vezes assinando Chiquinho das Perdizes ou Frank Cinatra, creio... Esta será a única vez que assume o seu nome verdadeiro e pela reprodução a preto e branco do jornal ia jurar que o autor colou imagens alheias dos fachos do Batman e Tintim. Mais tarde esta BD seria republicada a cores num fanzine do Geraldes Lino dedicado a "Efemérides" (e sim, esse é o nome do fanzine) e aí topa-se que na realidade o autor ou fez imitação à vista ou decalcou as imagens. Não deixa de ser um "comix-remix" de alguma forma sendo que a BD fala por si...
Entretanto o camarada Lam enviou-me este link zdnd.tumblr.com, terra do não-direito (de autor) mas também do francês Yvang que desenvolve um trabalho incrível de colagem fractal de BD popular bem Pop, colorida, psicadélica vintage,... E poucos dias recebia a newsletter do Le Dernier Cri a anunciar a exposição e catálogo Fotoshok (2013) dedicada a montagens, onde vamos ter os cirurgicos Fredox ou Sekitani, o punk-velho Winston Smith (Dead Kennedys, Alternative Tentacles,...), o muy digital Dave 2000 entre outros cromos... tudo à mistura e sem créditos, uma javardice à LDC, um gajo tem de conhecer os trabalhos da malta para os poder identificar!
Outro caso deste espírito dos tempos do Comix Remix, foi o lançamento do livro Le Carnet Rouge (Soleil; 2007) do dinamarquês Teddy Kristiansen para o mercado norte-americano. O livro sofreu o milagre da duplicação e ficou um "split-álbum": The Red Diary / The Re[a]d Diary (Image; 2012). O que aconteceu é que Steven T. Seagle (argumentista ianque que colabora com Kristiansen nos super-heróis) não sabendo um pingo de francês ou dinamarquês "traduziu" o livro criando um texto novo para as mesmas imagens - aliás, ele usou a sua técnica de "transliteration", que é "traduzir" palavras de uma língua para o inglês mas pelo o que ela "soa" ou se "parece". O resultado é um texto - uma história - completamente diferente do Le Carnet Rouge. Ambos os contos não são nada de especial, algo de "light" como é típico nos "álbuns franco-belgas", em que a mediocridade de temas são disfarçados pela "bela" arte, que todos reconhecerão Kristiansen como tal, com o seu estilo "impressionista" - talvez por iso é que tem no currículo o facto de ter sido o primeiro europeu a desenhar o Super-Homem. Mas depois de ler a sensação é que não muito a não ser "belos" desenhos. Curiosamente, o texto de Seagle parece ser mais concreto e interessante que o "original"... Foi o Joseph Beuys que disse que a "cópia é melhor que o original"?
terça-feira, 18 de julho de 2000
Tentativa de explicação porque a BD de bons argumentistas continuam a ser más BDs...
É-me quase impossível escrever um argumento para um filme sem primeiro escrever uma história. Até um filme depende, além do enredo, de uma certa dose de caracterização, disposição e atmosfera; e estas pareciam-me quase impossíveis de captar pela primeira vez no manuscrito de um script. Pode reproduzir-se um efeito apanhado noutro meio, mas não se pode realizar-se o primeiro acto de criação em forma de script. Deve ter-se a noção daquilo de que se precisa. O Terceiro Homem, pois, embora não escrito para ser publicado, teve de começar como uma história, perante as aparentemente intermináceis transformações de um tratamento para outro.
- Graham Greene, 1963 ou 1977?
- Graham Greene, 1963 ou 1977?
sexta-feira, 7 de janeiro de 2000
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