sexta-feira, 27 de setembro de 2019

1001 Vencidos


Li recentemente este livro que recomenda 1001 BDs para lermos antes de morrer e a sensação com que fiquei é que já li mais das metade das sugestões, que metade dessa metade, ou até mais, é lixo; que faltam realmente obras-primas na banda desenhada; que uma boa parte dos colaboradores deste calhamaço são nacionalistas ou cromos, ou ambos. Todos todos, menos o Domingos Isabelinho e o Pedro Moura que assinam os textos mais brilhantes deste tijolo - os textos significam "sinopses" e "contextos" das obras sugeridas - e não, não estou a ser um porco nacionalista ao defender estes dois investigadores portugueses.

Agora que sofreram da "timidez tuga" isso é visível, tendo só conseguido incluir a obra de um português - O Diário de K (Polvo; 2001) de Filipe Abranches, adaptando Raul Brandão - enquanto que o menos escrupuloso sueco Fredik Strömberg fartou-se de meter das suas merdinhas. Haveria razões para colocar mais obras portuguesas? Sim, pelo menos duas, a saber:

No Lazareto (Empreza Literária Luso-Brazileira, 1881 - reed.: Frenesi, 2003) de Raphael Bordalo Pinheiro, pai/ avô e mais qualquer coisa da BD portuguesa, o que seria um título tão importante como qualquer outro de outro país periférico às grandes indústrias da "bedófilia" se, efectivamente não tivesse mais valor intrínseco proporcionalmente ao seu desconhecimento público nacional e mundial. É das primeiras obras autobiográficas do mundo em BD, documento sobre os métodos de viagem e quarentena de quem vinha dos trópicos, denunciador da burocracia e corrupção latina e graficamente hilariante como só RBP sabia fazer.

Ecos da Semana de Carlos Botelho que entre 1928 e 1950, no jornal Sempre Fixe, produziu uma pequena vida sobre a cidade de Lisboa mas também comentando a ascensão do fascismo pela Europa e pincelando alguns episódios de recorte pessoal (autobiografia outra vez). Faz parte daquelas obras que toda junta - infelizmente só existem duas (re)edições em livro, uma pela Gulbenkian (1989) e outra pela Bedeteca de Lisboa (1998) - rivaliza outras idênticas, aquelas que acompanham o tempo real de braço dado com a vida do autor da obra, como o Gasoline Alley de Frank King, começada em 1918 e que existe até hoje, Príncipe Valente (bocejo!) de Harold Foster começada em 1937 ou Mämmillä de Tarvo Koivisto de 1974. Todas elas contam as ficções de uma família ou de uma cidade a evoluir em tempo real, ou seja, os bebés crescem e tornam-se punks, o príncipe dá umas fodinhas na princesa para que a aristocracia continue na boa, a ser aquilo que sempre foi: inútil. O "Vaselina" e o Valente podem ser muito bonitinhos mas parece que o Koivisto e o Botelho sejam mais relevantes, uma opinião.

Depois deste aparte, rewind... o pior de tudo são aquelas tiras "clássicas" ou a inclusão dos primeiros números em que aparecem este ou aquele super-herói. Não defendo que tenha-se de fazer grandes separações entre a BD comercial e popular da artística mas há uma diferença entre o Little Nemo de Winsor Mckay e a cagada do primeiro número da Action Comics onde nasce o Super-Homem. É que o Nemo ainda se consegue ler depois de 100 anos, o Super-Homem de 1938 é trampa e quem consegue ler aquilo e achar piada, só pode ser um atrasado mental - sem querer ofender os deficientes mentais. Que incluam super-heróis quando eles tenham interesse, por exemplo nas mãos de Frank Miller (facho de merda!), Alan Moore (anarquia já!) ou Grant Morrison (drogado do caralho!) mas fazer este compromisso de apresentar 1001 BDs entaladas entre socialmente relevante (super-heróis, por exemplo) com Arte, é dar um tiro nos pés. Sobretudo porque impinge a ideia de cânones dos cromos como uma espinha dorsal que depois congrega "o resto". Esse "resto" é o que realmente interessa. Por isso, é que não se encontra quase títulos Amok / Fréon / Fremok ou muito poucos de L'Association no terreno europeu, o que é deveras estranho quando foram eles que mais cartas deram à BD nos últimos 30 anos - o livro acaba com a data de 2011 - ficando só listados os que receberam prémios em Angoulême, como se fosse deste festival que viesse o carimbo exclusivo de qualidade.

Fazer uma coisa destas dá uma trabalheira e não vale a pena pensar a quantidade de pequenas incongruências ou erros que sucedem nas suas páginas. Num volume aumentado, melhorado e tal deverá dar -se conta disso mas há um gosto de derrota ao lê-lo. O Gravett de certeza que podia ter reparado em faltas graves - que ele não consiga engolir obras de línguas que não percebe como a portuguesa, tudo bem - mas nitidamente só do monstro franco-belga há razões para incluir outras obras e excluir outras em língua inglesa ou francesa ou japonesa.

Então, fui às compras, à procura de algumas das obras referidas e agradeço ter descoberto o artista dinamarquês Palle Nielsen (1920-2000) e o seu Orfeus og Eurydike (Hans Reitzels; 1955) mas já a parvoíce enche-chouriços britânico Magic Mirror (Elbonvale; 2010) de Ed Pisent dispenso completamente, foi deitar dinheiro para o lixo; tal como Kari (HarpeCollins India, 2008) da indiana Amruta Patil que pelo facto de ser um trabalho que a personagem é lésbica num país conservador faz dela uma autora corajosa mas não uma artista; ou Rumble Strip (Myriad; 2008) de Woodrow Phoenix que possui um texto poderoso sobre a (ir)responsabilidade de quem está ao volante mas os visuais minimalistas e sem uso de figuras humanas, não surtem nenhum efeito especial a não ser pensar que estamos de frente da preguiça, o que é pena, conceptualmente prometia; e, Forget Sorrow (W.W. Norton; 2010) de Belle Yang é outra desilusão, desenho horrível e narração desinteressante - o marketing insiste em comparar a Maus ou Marjane Satrapi mas não se compara, é um sucedâneo como muitos que andam por aí. Disappearance Diary ((Fanfare; 2008) de Hideo Azuma tem tudo para ser interessante, é o diário de um autor de BD que se passa e vive uma vida de mendigo. Infelizmente rapidamente torna-se num "gourmet" para sem-abrigos com piadolas sobre o aleatório deste tipo de vida. Sem nunca se explicar da razão do seu desequilíbrio mental ou a forma como isso afectou os seus pares, a obra torna-se tonta a dada altura.

Uma surpresa foi Special Exits (Fantagraphics; 2010) de Joyce Farmer, uma auto-ficção sobre os últimos dias dos pais da autora, livro com um peso deprimente mas com alguns apontamentos reconfortantes sobre a vida e a morte.

Recentemente li o Tom Hart e o seu Hutch Owen, divertidissimo mas nada feito nos "1001", não foi dos eleitos - por ser anarquista? Li The Pillbox (Jonathan Cape; 2015) de David Hughes e arrepiei-me q.b., não consegui o que o "1001" recomendava - Walking the dog (Jonathan Cape; 2009) - mas fiquei curioso... isto para dizer que há ainda obras a descobrir para além das "1001", menos mal.

Em compensação Life? Or Theater? (Taschen; 2017) de Charlotte Salomon (1917-43) é uma obra tão inesperada quanto impressionante. Composta por 700 desenhos / pinturas feitas a caminho para exterminação pela máquina Nazi, conta a história de Salomon e membros da sua família, o advento do Nazismo e sobretudo a vontade de viver de Charlotte face a um historial de suicídios de várias mulheres da sua família. E mais que um relato de uma tragédia há lugar para ensaios e que não deixaria passar esta frase: If the comtemporary sculptor cannot work without the phonograph sounding in his ears 'for inspiration of his soul' - this to me is proof that most artists of our time have lost the primordial sense of experience (...) all their urge to create turns them into apes and parrots (p.448) Um espírito assertivo que viveu nos piores dos tempos. Aliás estas frases poderão ser aplicadas a 75% do livro das "1001 BDs"...

Bom, estava preocupado enquanto profissional na área de que houvesse assim tantas obras importantes que não tivesse lido. Afinal está tudo bem, muito obrigado!